segunda-feira, 18 de julho de 2011

oito de ouros

(Estes são fragmentos retirados do livro “O dia do Curinga” de Jostein Gaarder. Situado nas páginas 266 a 271.)

“- Na praia, uma criança constrói um castelo de areia. Por um momento, contempla admirada a sua obra. Depois destrói tudo e constrói outro castelo. Da mesma forma, o tempo permite que o globo terrestre realize seus experimentos. Aqui nesta praça (Agora, na Grécia) se escreveu a história do mundo; aqui os acontecimentos foram gravados na memória das pessoas, e depois novamente apagados. Na Terra, a vida pulsa de forma desordenada, até que um belo dia nós somos modelados... com o mesmo e frágil material dos nossos antepassados. O sopro do tempo nos perpassa, nos carrega e se incorpora em nós. Depois se desprende de nós e nos deixa cair. Somos arrebatados como num passe de mágica e depois novamente abandonados. Sempre há alguma coisa fermentando, à espera de tomar nosso lugar. Isso porque não temos um solo firme sob nossos pés. Não temos sequer areia sob os pés. Nós somos areia.”
“- Não há lugar onde possamos nos esconder para escapar do tempo. Podemos escapar de reis e imperadores, e talvez até de Deus. Mas não podemos escapar do tempo. O tempo nos enxerga em toda parte, pois tudo à nossa volta esta mergulhado nesse elemento infatigável.”
“- O tempo não passa, e não é um relógio. Nós passamos e são os nossos relógios que faz tique-taque. O tempo vai devorando tudo através da história, silenciosa e inexoravelmente, como o sol se levanta no Leste e se põe no Oeste. Ele destrói civilizações, corrói antigos monumentos e engole gerações atrás de gerações. Por isso é que falamos dos “dentes da engrenagem do tempo”: o tempo mastiga, mastiga... e somos nós que estamos no meio de seus dentes.”
“- Por um breve espaço de tempo fazemos parte da extraordinária agitação deste mundo. Andamos pela Terra como se isso fosse a coisa mais evidente do mundo. Você viu como as pessoas se agitam feitam formigas lá na Acrópole? Mas toda aquela agitação vai desaparecer. Vai desaparecer e ser substituída por outra, pois sempre há outras pessoas prontas, à espera. Sempre surgem novas idéias. Nenhum tema se repete, nenhuma composição é escrita duas vezes... Nada é tão complicado e tão precioso quanto um ser humano. Apesar disso, somos tratados com futilidades baratas.”
“- Vagamos por esse mundo como personagens de uma aventura maravilhosa. Cumprimentamo-nos e sorrimos uns para os outros como se quiséssemos dizer: “Oi, aqui estamos nós vivendo juntos nesse momento! Dentro da mesma realidade... ou da mesma história”. Vivemos num planeta do universo. Mas logo seremos varridos do tabuleiro. Abracadabra e... pronto! Desaparecemos.”
“- Podemos dizer, de braços abertos, que existimos. Mas logo somos colocados de lado e enfiados no saco das trevas da história. Pois somos criaturas sem retorno. Somos parte de um eterno baile de máscaras, em que os mascarados vêm e se vão. Só acho que merecíamos coisa melhor, Hans-Thomas. Você e eu merecíamos ter nossos nomes gravados em alguma coisa eterna, que não fosse apagada como o mar que destrói o castelo de areia.”
 “- Você acredita que haja alguma coisa que não possa ser levada como a areia do castelo que a água do mar destrói?”
“ - Aqui – disse ele, e apontou para sua cabeça. – Aqui dentro tem alguma coisa que não pode ser levada. O pensamento não pode ser levado, Hans-Thomas. Os filósofos em Atenas achavam que também há uma coisa que não passa. Platão chamava isso de o mundo das idéias. Pois não é o castelo de areia a coisa mais importante na brincadeira da criança. O mais importante é a imagem de um castelo de areia que a criança tem na cabeça antes de começar a construir o castelo. Por que outra razão você acha que ela destrói com as mãos o castelo que acabou de construir?”
“- Nunca aconteceu com você de querer desenhar ou construir alguma coisa e não conseguir fazer isso direito? Você tenta mais de uma vez, tenta outras vezes, mas nunca dá certo. Isso se explica pelo fato de que a imagem que você tem do que quer fazer sempre é incomparavelmente superior às copias a que você tenta dar forma com as mãos. E o mesmo ocorre com tudo o que vemos à nossa volta. Trazemos dentro de nós a noção de que tudo o que vemos à nossa volta poderia ser melhor do que é. E sabe por que fazemos isso, Hans-Thomas? Porque trazemos em nós todas as imagens do mundo das idéias. É lá a nossa verdadeira morada, entende? E não aqui embaixo, no meio da areia, onde o tempo apanha e devora tudo o que amamos. Pelo menos era o que achava Platão, um dos maiores filósofos gregos. Nossos corpos têm o mesmo destino dos castelos de areia. Quanto a isso não há o que fazer. Mas temos uma coisa em nós que o tempo não consegue corroer. E não consegue porque ela não pertence a este mundo. Precisamos voltar nossos olhos para além e para cima do que vemos à nossa volta. Precisamos enxergar aquilo de que tudo à nossa volta é apenas uma imitação.” 

Um comentário: